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Por que não tenho medo da morte

Pelo tempo que fui Testemunha de Jeová, a morte sempre me foi algo incômodo, como parece ser para a maioria das pessoas. As Testemunhas acreditam que a morte significa apenas a volta à inexistência; elas não têm como doutrina a ideia de um inferno ardente,  para as almas pecadoras. Mas mesmo essa possibilidade de volta à inexistência  não tranquiliza a todas elas, a mim nunca tranquilizou. 

Parte da razão, suponho, é o fato de que, segundo ensinam elas, quem morre em pecado, ao voltar para a inexistência, está a deixar de ganhar a vida eterna em um paraíso aqui mesmo na terra, algo tal como o jardim do Éden. A perspectiva de morrer infiel e deixar de ganhar uma vida sem quaisquer das mazelas que faz parte da vida humana é algo que pode deixar qualquer Testemunha em permanente crise de pânico. E foi exatamente assim que vivi por todo um ano, quando fui excomungado pela igreja, numa fase em que ainda acreditava em todo o arcabouço doutrinário dessa religião.

Hoje, passado uns 10 anos, deixei de acreditar na Bíblia conforme interpretada pelas Testemunhas de Jeová; não só isso, também deixei de acreditar na Bíblia como interpretada por qualquer religião cristã, porque, pela minha própria leitura do Livro, não consigo ver nele qualquer evidência de um guia divino; todos os indícios, até onde sou capaz de compreender, dão conta de se tratar puro e simplesmente de um produto da mão humana, um livro que registra os caprichos, as vontades, as paixões, o amor e ódio de uma antiga civilização cananeia.

Mas deixar de acreditar na Bíblia, diferente do que pode-se supor, não me levou à desilusão completa, não perdi a alegria de viver e também não me entreguei a qualquer comportamento antissocial ou a vícios, e uma das melhores partes dessa descrença é a ausência de qualquer medo da morte - que é a razão desta postagem. Sei que é possível crer em Deus e não ter medo da morte; parabéns para quem o consegue. Eu não consegui, e se encontrei essa paz mental agora, quando, segundo acredito, não me espera qualquer recompensa depois do último suspiro,  preciso descobrir o porquê - e contá-lo ao prezado leitor. 

Foram necessários alguns anos de descrença para que eu me acertasse com a resposta, e ela está presente todos os dias em minha vida, em minha família, no trabalho, nos noticiários. A resposta é simplesmente esta: a vida é uma miséria. 

A vida de todas as pessoas é uma miséria, embora cada pessoa  defina isso de diferentes maneiras. Umas dizem que são infelizes e outras dizem que são felizes, mas. ao fim e ao cabo, a vida de uns de de outros é uma miséria, seja em razão de dívidas, de doença, de crises familiares, de irritação com vizinhos, insatisfação com o trabalho, ou qualquer outra desgraça que você puder acrescentar à lista. 

Quando se toma conhecimento dessa realidade, e se tem consciência de que vai ser assim por décadas, por séculos ou por milênios, então não se vislumbra uma razão para lamentar a ideia de deixar de existir. E nestes dias, com a TV a mostrar minuto a minuto uma tal guerra no leste europeu, e com discussões sobre uma possível guerra nuclear, então tudo isso se soma à ideia de que a vida humana é uma miséria - em todos os sentidos que você possa imaginar. 

É assim desde sempre, e pode ser assim por milênios, enquanto existir humanos. Daí porque deixar a vida e voltar à inexistência pode ser como deixar uma festa que tinha lá a sua graça, e sumir na escuridão do caminho de casa, e sem nunca se lembrar de quem estava na festa ou de que houve um dia alguma festa. Não, não tenho medo da morte; por agora, enquanto curto a festa, enquanto sinto cheiro de cachaça e me canso de uns amigos bêbados, sei que a morte está lá fora e me espera. Muito paciente, muito amiga. 



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Comentários

  1. Boa noite, meu querido amigo Lourisvaldo!

    Como vc vai de saúde e de país? Eu estou satisfatória (nunca há tudo bem), vivendo algumas preocupações com a guerra da Rússia contra a Ucrânia, visto que meu país se situa na Europa.

    Devorei teu texto, tão bem escrito, e tão racional (precisamos de muita racionalidade), mas eu tenho medo da morte para te falar a verdade. Como vc bem disse, essa vida (não sei se há outra) é uma miséria em muitos aspetos e quem se diz verdadeiramente feliz, ou vive de drogas ou é bobo.

    Contigo aprendo sempre mais e minhas ideias, que tendem a ser agnósticas, ficam mais clarificadas.

    Um beijo de muita amizade. Bom domingo.

    Não acredito na bíblia, pois foi e continua sendo interpretada pela Humanidade, e cada crença, a interpreta de maneira diferente, qdo não deveria ser assim.

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